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                                    309Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 70, n. 110, p. 307-326, jul./dez. 2024os extremos, o resultado seria o mesmo: o esvaziamento progressivo da sua função civilizatória.Essa tensão entre a norma estatal e a norma negocial não tem sabor de novidade. Como previu Georges Scelle há quase um século, em célebre conferência na Faculdade de Direito de Paris, o Direito do Trabalho atravessa três ciclos históricos: o da vontade arbitrária do empregador; o da proteção estatal; e o da autorregulação coletiva. O trabalhador, ao romper com o despotismo patronal, utilizou a força do Estado como ferramenta de emancipação. Mas - advertia Scelle - chegará o momento em que também se buscará superar a necessidade de proteção estatal, para afirmar sua própria autonomia por meio do diálogo social. A realidade contemporânea confirma esse prenúncio: a negociação coletiva amplia a cada dia a sua importância, mas ainda não chegamos ao ponto de dispensar o amparo jurídico do Estado.A crença de que a negociação, por si só, é capaz atualmente de suprir as lacunas históricas de desigualdade nas relações de trabalho ignora a assimetria de forças que continuam marcando o mundo laboral, especialmente em contextos de baixa densidade sindical ou crise econômica. Além disso, obscurece a função civilizatória da legislação trabalhista, concebida não apenas como instrumento de regulação, mas como expressão normativa de valores fundantes do Estado Democrático de Direito.Não se ignora, nem se pretende com essa afirmação desconsiderar o que decidiu o Supremo Tribunal Federal ao apreciar o Tema 1046 de repercussão geral1.É preciso, contudo, atentar-se para o tema central desta tese. O que se coloca em debate, na verdade, não é a validade de normas coletivas que ampliem direitos - estas jamais suscitaram maiores controvérsias, pois se harmonizam com o princípio da norma mais benéfica e com a lógica histórica da negociação coletiva como vetor de progresso social.1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.121.633, Relator: Ministro Gilmar Mendes, julgado em 2 jun. 2022, publicado em 28 abr. 2023. Tema 1046 - Repercussão Geral: Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
                                
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