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Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 70, n. 110, p. 259-303, jul./dez. 2024263Nesse contexto, a instigante obra de Gilles Deleuze, especialmente em Diferença e Repetição, oferece um arcabouço teórico particularmente fecundo para a análise crítica da decisão judicial assistida por inteligência artificial (IA). Para Deleuze, a repetição não se reduz à reprodução do idêntico nem à cópia “do mesmo”; ela é, ao contrário, uma força ontológica e epistemológica criadora. Cada repetição implica uma atualização diferenciada de um virtual, ou seja, um retorno que, a cada iteração, engendra o novo, o singular, a diferença. A repetição, nesse sentido, é uma operação produtiva, que desestabiliza o regime da identidade e introduz variações capazes de fazer emergir o inédito (Deleuze, 2006).Essa concepção filosófica de repetição e diferença, profundamente antagônica ao paradigma da mera uniformização, tem consequências teóricas relevantes quando aplicada ao campo jurídico. O universo jurídico tradicional, estruturado em torno de dispositivos como o princípio do stare decisis, da coerência jurisprudencial e da uniformização da interpretação normativa, pode ser compreendido como um espaço institucionalizado de repetição. Essa repetição, porém, não é neutra: ela busca garantir segurança jurídica, isonomia e previsibilidade, pilares fundamentais da racionalidade jurídica moderna.É na diferença, contudo - no caso concreto com sua tessitura fática única, na situação social com suas especificidades históricas, na relação humana carregada de singularidade - que o direito se renova. Cada decisão judicial exige, portanto, mais do que a aplicação automática de precedentes; exige um juízo interpretativo que seja capaz de captar a exceção e, eventualmente, romper com a regra para alcançar o justo. O ato de julgar se torna, assim, um exercício tensionado entre a repetição normativa e a diferença existencial - entre o universal da norma e o particular do vivido.O fazer jurisdicional humano, portanto, constitui-se como um equilíbrio precário e dinâmico entre forças aparentemente antagônicas, mas ontologicamente complementares: repetir para manter a estabilidade do sistema, mas também diferir para garantir sua abertura ao real. O juiz, enquanto agente hermenêutico, encarna essa tensão. Munido de sensibilidade, discernimento e responsabilidade ética, ele opera no entrelaçamento entre o texto normativo e a vida concreta, entre a rigidez da forma e a plasticidade da justiça.A introdução de sistemas de IA no processo decisório judicial, contudo, reconfigura essa equação. Os algoritmos, treinados com base em grandes volumes de dados jurisprudenciais, tendem a operar por inferência estatística, identificando padrões recorrentes e replicando decisões que se mostraram eficazes no passado. A promessa de uma justiça mais rápida,

