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manifestações, representando violação dos direitos humanos e atingindo
a cidadania das mulheres. Safiotti (2015), falando sobre violência de
gênero, em especial a intrafamiliar e doméstica, menciona a dificuldade
de se utilizar o conceito de violência como ruptura de diferentes tipos de
integridade (física, sexual, emocional, moral) por serem muito tênues os
limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar uma espécie
de destino de gênero traçado para as mulheres, o destino da sujeição.
Para ela, a existência desse limite tênue já é, em si, uma violência, que
funciona como mecanismo de sujeição das mulheres aos homens.
Embora atenuada, essa violência persiste no domínio público, associada
à ideia de que, quando o homem toma iniciativas sexuais, ainda que
claramente indesejadas e/ou não solicitadas, está simplesmente a exercer
seu papel, pois teria impulsos sexuais irrefreáveis. Às mulheres caberia
aguardar e aceitar as iniciativas. A mentalidade social predominante,
até principalmente na década de oitenta do século passado, era de
estigmatização e repressão da sexualidade feminina.
Se, por um lado, o controle da sexualidade não era uma
preocupação para os homens, para as mulheres ele era imperativo. O
direito chancelava essas representações e essa prerrogativa de acesso
ao corpo feminino de formas as mais diversas, podendo ser citado o
exemplo da demora para o reconhecimento da possibilidade do estupro
praticado pelo marido, bem como os “crimes contra os costumes”, que,
no Código Penal, regulavam, até 2009, os crimes de violência sexual. Se
observarmos a realidade das mulheres negras, a situação é bem mais
dramática, pois a opressão de que são vítimas intersecciona questões
raciais, além das questões de gênero. No contexto escravocrata brasileiro,
os senhores tinham acesso total ao corpo das mulheres escravizadas,
com base em uma dupla hierarquia: a de dono e a de macho. Davis (2016,
p. 20) chama a atenção para o fato de que, na época da escravidão,
o estupro “[...] era uma expressão ostensiva do domínio econômico
do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na
condição de trabalhadoras.” Hooks (2019) afirma que as representações
dos corpos de mulheres negras vigentes na cultura reproduzem imagens
da sexualidade da mulher negra que faz parte de todo o conjunto cultural
racista do século XIX, moldando percepções até os dias de hoje. A crítica
ou a subversão dessas imagens ainda é rara, sendo frequente a ideia de
que o corpo da mulher negra, mais do que o da mulher branca, é um
corpo disponível para ser utilizado.
Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 66, n. 101, p. 151-182, jan./jun. 2020