Page 154 - REVISTA DO TRT3 Nº 101
P. 154

154


          manifestações, representando violação dos direitos humanos e atingindo
          a  cidadania  das  mulheres.  Safiotti  (2015),  falando  sobre  violência  de
          gênero, em especial a intrafamiliar e doméstica, menciona a dificuldade
          de se utilizar o conceito de violência como ruptura de diferentes tipos de
          integridade (física, sexual, emocional, moral) por serem muito tênues os
          limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar uma espécie
          de destino de gênero traçado para as mulheres, o destino da sujeição.
          Para ela, a existência desse limite tênue já é, em si, uma violência, que
          funciona  como  mecanismo  de  sujeição  das  mulheres  aos  homens.
          Embora atenuada, essa violência persiste no domínio público, associada
          à ideia de que, quando o homem toma iniciativas sexuais, ainda que
          claramente indesejadas e/ou não solicitadas, está simplesmente a exercer
          seu papel, pois teria impulsos sexuais irrefreáveis. Às mulheres caberia
          aguardar  e  aceitar  as  iniciativas.  A  mentalidade  social  predominante,
          até  principalmente  na  década  de  oitenta  do  século  passado,  era  de
          estigmatização e repressão da sexualidade feminina.
               Se,  por  um  lado,  o  controle  da  sexualidade  não  era  uma
          preocupação para os homens, para as mulheres ele era imperativo. O
          direito chancelava essas representações e essa prerrogativa de acesso
          ao corpo feminino de formas as mais diversas, podendo ser citado o
          exemplo da demora para o reconhecimento da possibilidade do estupro
          praticado pelo marido, bem como os “crimes contra os costumes”, que,
          no Código Penal, regulavam, até 2009, os crimes de violência sexual. Se
          observarmos a realidade das mulheres negras, a situação é bem mais
          dramática, pois a opressão de que são vítimas intersecciona questões
          raciais, além das questões de gênero. No contexto escravocrata brasileiro,
          os senhores tinham acesso total ao corpo das mulheres escravizadas,
          com base em uma dupla hierarquia: a de dono e a de macho. Davis (2016,
          p. 20) chama a atenção para o fato de que, na época da escravidão,
          o  estupro  “[...]  era  uma  expressão  ostensiva  do  domínio  econômico
          do  proprietário  e  do  controle  do  feitor  sobre  as  mulheres  negras  na
          condição de trabalhadoras.” Hooks (2019) afirma que as representações
          dos corpos de mulheres negras vigentes na cultura reproduzem imagens
          da sexualidade da mulher negra que faz parte de todo o conjunto cultural
          racista do século XIX, moldando percepções até os dias de hoje. A crítica
          ou a subversão dessas imagens ainda é rara, sendo frequente a ideia de
          que o corpo da mulher negra, mais do que o da mulher branca, é um
          corpo disponível para ser utilizado.


                Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 66, n. 101, p. 151-182, jan./jun. 2020
   149   150   151   152   153   154   155   156   157   158   159