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74Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 70, n. 110, p. 65-96, jul./dez. 2024Em outra prova, já no mundo cristão, o padre abençoava um pão que o acusado tocava; se o pão (aos olhos dos juízes) ondulasse, a culpa estaria provada. Algumas vezes, pedia-se aos litigantes que abrissem os braços diante da cruz, enquanto se rezava o Evangelho; quem os tombasse primeiro perdia a causa.Havia também a prova das bebidas amargas. Era preciso tomá-las sem fazer caretas. Na prova do fogo, o acusado passava entre espinheiros em chamas, com a roupa embebida em cera15. Já entre os franco-lombardos, o acusado devia retirar objetos da água fervente, sem queimar as mãos. Em outra prova, bem ao contrário, mergulhava as mãos na água fria; se elas se queimassem - naturalmente por obra divina - ele seria condenado.Comuns, também, eram os duelos. Em geral, quando envolviam dois nobres, as regras eram igualitárias. Mas quando, por exceção, duelava com um plebeu, o nobre deveria se despir da armadura e descer do cavalo, para diminuir as diferenças.Mulheres, velhos e crianças também duelavam, mas através de seus campeões. Em alguns lugares, as mulheres podiam combater pessoalmente - mas nesse caso o nobre se fazia enterrar até à cintura16.Pouco a pouco, porém, o Direito Romano foi voltando, misturado com o Canônico e com as próprias Ordálias. Assim, em certos lugares, privilegiavam-se as testemunhas; mas se elas se contradiziam, tinham de duelar entre si. As do grupo vencido, se ainda vivas, perdiam a mão direita - salvo se preferissem pagar 1/3 do valor da causa ao Fisco e 2/3 ao adversário17.Pouco a pouco, porém, nascia o sistema do inquérito. Já então, a verdade já não era revelada, mas investigada18. A Justiça se inseria na idade da razão, que implica o cálculo, a organização, a regra precisa - modos de explicar e assim legitimar a sentença do juiz. A Verdade seria então melhor aceita.15 Talvez em alusão a um episódio da Bíblia, quando Jeová apareceu a Moisés sob a forma de uma sarça (espécie de espinheiro) em chamas (CALDAS AULETE. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Delta, 1980, p. 3.294). 16 A propósito, escreve CANTELLI, Paula Oliveira (O trabalho feminino no divã: dominação e discriminação. São Paulo: LTr, 2007, p. 68) que até durante a Alta Idade Média as mulheres eram tratadas com indiferença e até brutalidade; a partir dos séculos XII e XIII, o ideal cavalheiresco as colocou num pedestal - embora ainda preconceituoso - iniciandose aí uma tendência crescente de igualização dos sexos. O costume acima referido talvez possa ser interpretado assim. 17 SANTOS, Moacir Amaral. Tratado..., tomo III, cit., p. 67. 18 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Nau/PUC Rio, Rio de Janeiro, 1999.

